terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Donna di Servizio - 8 de Ouros


Todo mundo sabe que não se pode ignorar o mordomo da mansão, certo? Aquela pessoa que está sempre presente, mas que todo mundo esquece que tem ouvidos e boa memória. A serviçal não tem nome, não tem história e, ao vestir um uniforme, deixa de ser um indivíduo. A "invisibilidade" chegou a ser tese de mestrado de um estudante da Universidade de São Paulo: ao vestir um uniforme de gari, até mesmo seus conhecidos passavam por ele e não o reconheciam (mais detalhes aqui). O mesmo acontece com o nosso arcano. Como o Militare, ela acata ordens sem questionar. Sem a esperança, no entanto, de um dia tornar-se heroína.

Mas não é preciso ser doméstica para passar por isso. Quem se esconde na baia de um escritório entende o que eu estou falando. O trabalho é bem feito, mas os louros não vão ficar com alguém que ninguém sabe quem é, certo? Somos invisíveis em muitas fases da vida. Às vezes preferimos ficar assim. Sob esse aspecto, a carta representa aquele trabalho repetitivo, nos bastidores, sem reconhecimento.

E se ela praticamente não existe para nós, talvez queiramos que ela seja assim. É confortador. Alguém que ganha pouco, não tem muitas escolhas e que não abre a boca para nos contar o rosário de desgraças da vida dela: a vida que nunca melhora, o ônibus sempre lotado, o dinheiro que não basta, o filho doente, o marido que bebe. A Donna di Servizio pode representar a divisão de classes (se estiver ao lado do Gran Signore, principalmente), a imensa massa de proletários que trabalha calada e dificilmente mudará de vida, a despeito dos sonhos de ascensão social vendidos nos meios de comunicação.

Também temos a Serviçal Raposa (pedimos aqui um empréstimo do Lenormand), que aproveita as oportunidades provindas da própria invisibilidade. Ela tem ouvidos bem atentos, e acesso à intimidade de seus patrões. Como um ladrão, junta evidências para tirar algum lucro, ou simplesmente para se vingar da indiferença - ou até crueldade - com que é tratada. Quem não se lembra da empregada Juliana, do Primo Basílio?


Marília Pêra como Juliana na minissérie global de 1988


Ao descobrir que a patroa Luísa traía o marido como o seu primo Basílio, Juliana vislumbrou a oportunidade de infernizar-lhe a vida. Não que Luísa a tivesse sempre tratado mal e merecesse. Juliana vinga-se por todas as serviçais humilhadas, esgotadas pela limpeza que nunca acaba em troca de nada.

Então o conselho da carta é: mais discrição, por favor! Trabalhe como a Donna di Servizio, na sombra. Você pode colher bons frutos disso. Ou então, cuidado com a sua intimidade! Quem tem acesso a ela? São pessoas de confiança? Você precisa mesmo se expor assim? Porque às vezes é melhor a gente arrumar tempo para limpar a própria sujeira.




Bibliografia inspiradora:

Costa, Fernando Braga da. HOMENS INVISÍVEIS: Relatos de uma Humilhação Social. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2004.

Queiróz, Eça de. O PRIMO BASÍLIO. São Paulo: Editora Ática, 1998.






Nenhum comentário:

Postar um comentário