quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Deserto dos Tártaros - uma interpretação sibilina


O Deserto dos Tártaros é obra do escritor italiano Dino Buzzati e foi adaptado ao cinema em 1976. Ainda que digam que os livros são melhores do que os filmes, posso dizer que o filme é suficientemente intrigante para uma análise com as cartas. Alguns cenários e situações lembraram-me imediatamente o Sibilla Della Zíngara.

A história se passa num país indefinido, da mesma forma que a narrativa não se limita em si mesmo. O soldado Drogo é incumbido de servir num posto de fronteira: uma fortaleza que dá para o deserto por onde, séculos antes, os tártaros haviam invadido o país. Animado com a possibilidade de começar uma carreira de verdade como militar, o jovem parte para o forte Bastiani. Da mesma forma que nosso soldado sibilino, ele consegue sorrir diante do deserto inóspito, pois vê nele o cenário para chegar à Glória por meio de atos heroicos. O deserto dos tártaros é uma fronteira quase intransponível, mas por onde - dizem - os tártaros invadiram o país muitos séculos antes. 


A troca do conforto de casa pela jornada heroica traz o consolo do reconhecimento e da transformação do Homem em Herói


Na jornada em direção ao forte, Drogo se perde por alguns momentos, mas encontra amparo no Capitão Ortiz, que também se dirige para lá. A viagem arriscada começa a transformar o rapaz, retirado do conforto da cidade e da família. Tendo optado por uma carreira destinada à luta e a defesa de seus compatriotas, o desconforto de viver longe dos seus e fora de casa - pois o Forte jamais se tornará uma casa, um lar - lhe dá o consolo do possível reconhecimento, da superação da sua própria condição humana.

Mas ainda que seu desejo seja genuíno e que tenha se preparado, ele pode cair em armadilhas desconhecidas das quais sairá sozinho ou com ajuda dos mais experientes. A ajuda e as lições vem do Capitão, homem de meia idade, no qual Drogo percebe logo a sombra de uma inquietação compartilhada e a solidão dos homens que dedicam-se ao que é maior do que eles mesmos. Distanciam-se discretamente do resto da humanidade, tão diferente e apegada a suas crenças cotidianas e limitantes. Será que, no entanto, conseguem ser maiores do que essa humanidade que eles veem com tanto enfado?



A lenda da invasão tártara ronda a fortaleza, onde alguns dos soldados afirmam ter visto cavaleiros tártaros na escuridão da noite. Mas seriam fantasmas de uma época encantada ou seriam reais? Por que manter uma fortaleza numa fronteira de difícil acesso, baseado em um fato (fato?) ocorrido há tanto tempo? Por que o passado define os deveres, medos e expectativas do presente, a ponto de dedicar dias inteiros de vidas inteiras a eles?



Assim, passam dias e noites vigiando, ansiosos, que a vida militar realmente comece: com uma luta de verdade, uma guerra, a resistência a uma invasão. Expectativa que há muito não se torna realidade. E para preencher com sentido uma vida militar sem lutas, resta-lhes apegarem-se à aplicação severa do regulamento e de cerimônias, ainda que estejam em número pequeno e isolados no deserto.


Alegria mostra três pessoas bem vestidas que brindam a algo. Não podemos dizer que são amigas, apesar de festejarem juntos. As roupas de gala dão um ar de gravidade e de distância entre as pessoas. Por vezes, as hierarquiza e as classifica. Num ambiente militar, a hierarquia diz quem você é, a despeito de sua essência. No fim do mundo que é a Fortaleza Bastiani, as máscaras e separações formais insistem em fazer-se presentes, a fim de trazer humanidade a um lugar tão hostil. Mas uma humanidade no sentido mais amplo do termo, com todos os seus vícios e reações defensivas.

A submissão a leis inquestionáveis, que trazem consigo uma série de tarefas cotidianas das quais dependeria o Equilíbrio, a Ordem do próprio Universo.  Não seriam apenas um modo de dar sentido à própria existência?

Junto com a Hierarquia vem a Lei, na esperança de que a Ordem traga algum significado a espera tão longa. Drogo confronta-se com o regulamento que por vezes se sobrepõe à própria realidade. É preciso dar algum sentido ao tempo passado na fortaleza, verdadeira prisão sem fim algum. No lugar mais improvável, o regulamento é seguido à risca, os uniformes estão sempre impecáveis e imponentes, a vigilância é acirrada. Só uma crença muito forte no dever pelo dever pode sustentar tal zelo pelas regras, a essa altura sem utilidade alguma e por vezes nociva e mortal.

A surrealidade da situação é clara pra quem vê de fora, mas o que fazemos com a nossa rotina? Por que seguimos certas regras, quando foi que perdemos a finalidade de cada coisa que fazemos, do nosso trabalho e até dos nossos sonhos? 


A espera vã é também uma prisão. Muitas vezes, a espera sem fim baseia-se numa ilusão que cega. Será que a moça que vemos no terraço de Espera pode sair dali? Sua visão é privilegiada, mas distorcida: a cidade parece-lhe menor, distante, controlável. Mas a cidade é tudo menos controlável. Ainda que ela espere ali, paciente e aplicadamente, não fará chegar aquilo ou aquela pessoa somente com a sua vontade. Na expectativa por qualquer coisa, a vida passa e pouco ou nada é feito. Decidimos que a vida sempre começará quando determinado evento acontecer, quando se tiver dinheiro, quando se conseguir determinado emprego ou se tiver filhos. Nesse meio tempo, pode-se criar valores e regras para dar sentido à espera. Mas e quando a espera torna-se um fim em si? 



O nosso soldado envelhece esperando e esperando, sem perceber que a juventude que se esvai aos poucos. E a aguardada invasão se vai com a sua juventude.
“A ampulheta avança sem pedir licença, não espera que a acompanhemos em sua voracidade, tudo depende da nossa percepção do que vale a vida e do que a mesma merece que com ela façamos. A areia que se esvai por entre os dedos está em nossas mãos. Os dedos são nossos e o que fazemos com a areia que entre eles escapa é nossa decisão, só nossa.”













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