domingo, 7 de junho de 2015

Mercante: o medo do que está fora de nós



Nas versões mais conhecidas da Sibila, o Mercante é apresentado como um estrangeiro carrancudo ou pensativo diante de sua mercadoria. Olha para o horizonte, para o mar, para os navios que zarpam e são promessas de negócios além-mar, de riquezas multiplicadas.

O Mercante, quando surge no jogo como uma terceira pessoa, aconselha ao Consulente que permaneça com um pé atrás. Quem não confie em tudo o que vê, que avalie duas, três, quatro vezes a situação.

O Mercante não é qualquer estrangeiro: é um árabe. Em tempos medievais, algumas cidades italianas eram prósperas pelo comércio com o Oriente. Traziam à Europa alguns confortos não disponíveis em tempos tão difíceis: especiarias, sedas, tapetes. Monopolizavam o comércio com os árabes, que estavam logo ali, do outro lado do Mediterrâneo. Esse monopólio levou Espanha e Portugal a buscar outras rotas de comércio com o Oriente, o que os acabou levando - entre outros lugares - à América. 

Ainda que lidem há muito tempo com os comerciantes árabes, o medo do desconhecido, do "maometano" cujas regras de conduta e meios de vida não condizem com a vida cristã e católica, sempre deixou os italianos - e os ocidentais em geral - desconfiados de tais interações. Quando pisavam num país estrangeiro para negociar, não estavam pisando em solo santo, seguro. Tudo poderia acontecer.

E até hoje, ainda que convivamos com esses estrangeiros em nossas próprias terras, o medo persiste. Afinal, que religião eles têm? Que roupas vestem? Herdamos uma rixa histórica entre cristãos e muçulmanos que vem da época das Cruzadas.



ASibilla ´800 traz outro árabe em suas cartas: o Ladrão. Como o Mercante, não conhecemos suas regras de conduta, não o consideramos parte do nosso mundo seguro e ético e queremos vê-lo o mais longe possível de nós. Suas ações, assim como as do Mercante, são dúbias e procuram tirar de nós mais do que queremos oferecer, sem que percebamos.

Esses personagens não representam necessariamente a "índole natural" desses estrangeiros. Eles dizem mais sobre nós do que sobre eles. Eles mostram nosso preconceito nutrido e, acima de tudo, nosso medo do desconhecido. Nosso medo de ser assaltado a qualquer momento, de ter nossas terras conquistadas (medo bastante presente na Europa do Leste durante as conquistas dos turcos otomanos), nossa casa devassada, nossos bolsos espoliados.

Não sugiro que as imagens sejam mudadas imediatamente. Somente que prestemos atenção ao que é real e ao que é projetado. Quando Mercante e Ladro aparecerem, lembremo-nos que estamos em território estranho. Que devemos pisar em ovos não porque os outros sejam perigosos, mas porque nós não conhecemos suas regras e modo de vida. Que nem todos aqueles que nos cercam compartilham os mesmos princípios que nós (corretos ou não) e podemos nos surpreender.


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