Devo confessar que tenho especial
predileção pelas cartas sombrias dos baralhos divinatórios.Não é diferente com o par de Inimigos da
Sibilla Italiana. E o conjunto de sentimentos pérfidos que os acompanha: a
agressividade, o ódio, a frieza, a falsidade... e especialmente a inveja.
Nos dicionários a inveja
geralmente se liga a duas interpretações: o desgosto pela felicidade alheia e o desejo
de ter o que o outro possui. Essas duas vertentes trazem algo em comum: a ânsia
pela destruição do invejado. Apenas desejar o que o outro tem é cobiçá-lo, e
não invejá-lo. Para a cobiça temos o Ladrão, por exemplo, que rouba o que
precisa e deixa o proprietário em paz, se não surgir em seu caminho.
E eu só satisfaço minha inveja
quando a felicidade da pessoa que eu invejo se acaba. Ganho alguma coisa com
isso? Não. Por isso não é um sentimento muito fácil de se assumir. É
vergonhoso. Nos faz admitir a nossa falta, as nossas fraquezas. Porque se eu
tenho tudo o que considero bom, não preciso ter inveja. O invejoso, portanto, é
um fraco. O invejoso é sempre o outro, nunca a gente.
Assim chegamos ao Valete e a
Rainha de Espadas da Sibilla Italiana – o Inimigo e a Inimiga – que são os únicos
personagens que trazem em suas mãos armas fatais: uma serpente (venenosa,
supomos) e um punhal. Seu objetivo é certo: destruir.
E destruir não é um ato dos
desastrados e dos cruéis. Nosso impulso pela destruição aparece, por exemplo,
lá na infância... quando mordemos nossos brinquedos e os atiramos longe. Depois de
crescidinhos aprendemos a disfarçar esse impulso destrutivo. Mas ele está lá.
Faz parte de nós.
Qualquer uma das duas cartas apresenta
um perigo. A natureza do perigo é que varia de uma carta para a
outra. Mas a inveja eu vejo especialmente na Inimiga. Por quê?
O Inimigo, além de ser um Valete
(o que faz dele uma “criança” perto da destreza da Rainha, a Inimiga), traz uma
serpente. Seu rosto é quase neutro. Não sabemos nem se ele está ali por ter
motivos pessoais ou se é apenas um assassino de aluguel que não diferencia suas
vítimas. Ele sequer olhará para a sua presa para matá-la... simplesmente
deixará a serpente num lugar estratégico e ela fará o seu trabalho. Sua capa é
azul, o que nos sugere uma certa racionalidade. Além disso, seu culote é
vermelho e azul... paixão e razão se misturam delicadamente. Seu plano,
portanto, é meticuloso, bem pensado. Se perceber que não é sua chance de agir,
não pensará duas vezes antes de abortar a estratégia e esperar por uma
oportunidade melhor.
A Inimiga tem um vestido e uma
máscara vermelhos. Até sua máscara é passional. Sua arma, o punhal, exige a
proximidade de sua vítima. Fingirá ser uma
amiga, uma amante, o que for necessário. Seu rosto é pérfido. Ela se satisfaz
ao pensar em seu plano, ao visualizar a destruição de seu rival. Porque o outro
não é só uma vítima... é alguém que a ameaça de maneira profunda,
que ameaça sua própria existência. Uma das palavras que define a Inimiga, na
legenda, é pettegolezzi. Traduzindo... fofocas. A fofoca também é uma arma de
destruição que pode provar-se bombástica.
Um famoso exemplo de invejoso no
cinema é Salieri (Amadeus, 1984). Salieri, incapaz de ser genial como Mozart e
– ao mesmo tempo – não podendo conviver com tal brilho alheio, dedica sua vida
à destruição do compositor. E o faz com tal maestria que Mozart sucumbe sem
perceber de onde vem o golpe fatal.
Quando a Inimiga aparece no jogo,
damos um pulo na cadeira. A leitura de cartas pode mostrar um futuro
brilhante... e mostrar a Mascarada ali no meio. Pois é no
momento de sucesso que atraímos a inveja alheia. É nessa hora que provamos a
amizade de velhos camaradas. Ser amigo nos momentos de dificuldade é fácil...
ajudar o próximo necessitado nos traz uma certa superioridade moral reconfortante. Mas o
sucesso alheia nos lembra do nosso próprio fracasso. Ter amigos de sucesso e
estar feliz por eles... eis aqui uma rara virtude.
E por isso a Inimiga pode estar
representando também o próprio consulente na leitura. Sim, todos nós temos um
pouco dela! Sabe aquela vontade de esmagar o outro? “Quem ele pensa que é? Não
se enxerga?” Nossa curiosidade mórbida pelos tablóides... a atriz bonita que
envelheceu, a rainha da bateria que se estatelou no chão durante o desfile da
escola de samba, o empresário de sucesso que perdeu tudo, o político de
carreira meteórica que foi preso por corrupção.
Antes de apontar para azinimiga
do consulente, tente entender a situação como um todo. Veja se há motivos para
despertar inveja ao redor ou se há motivos para que ele sinta inveja. Porque é
muito fácil e confortável dizer para ele que “tem muita inveja na sua vida, meu
filho”. Sim, todos temos inveja na nossa vida e às vezes as cartas estão
alertando mesmo para uma pessoa perigosa – e próxima – que quer destruí-lo. Mas
essa afirmação automática, que tira a responsabilidade dele e ao mesmo tempo o
lisonjeia, pode ser um desserviço.